Na semana passada escrevemos um pouco sobre seleção natural e como alguns fatos provam que ela ainda não acabou. Continuaremos nesse assunto, mas dessa vez para falar um pouco sobre algumas populações que habitam nosso planeta e possuem características únicas, moldadas a partir da interação de sua genética com o ambiente onde vivem, ao longo de muitas e muitas gerações. 

O sucesso da evolução está diretamente relacionado a esse fenômeno, que Darwin descreveu como “seleção natural”, já que os desafios apresentados para a sobrevivência em um determinado ambiente acabam por selecionar, ao longo das gerações, indivíduos com informações genéticas que possuam maiores chances de sobreviver a tais desafios. 

Apresentaremos a seguir cinco povos que são exemplos vivos da atuação da seleção natural na espécie humana:

Povos do mediterrâneo e a anemia falciforme.

anemia falciforme, é uma doença hereditária que configura uma má formação das hemácias, podendo afetar a população em diferentes graus. Embora ser portador dessa condição genética possa gerar desvantagens por conta de alterações no transporte de oxigênio pelo corpo, atualmente, com o avanço da medicina, indivíduos portadores de doenças hemolíticas possuem expectativa de vida semelhante à de indivíduos totalmente saudáveis.

Somado a estes avanços, estudos mostram que as modificações dos glóbulos vermelhos do sangue causadas pela anemia falciforme conferem vantagens em relação ao bloqueio na ação do parasita da malária, dificultando que esse protozoário cause a morte do hospedeiro. Isso ocorre porque as hemácias nessas pessoas são modificadas, de forma que não há como o parasita ser transportado e se estabelecer no corpo. Através de uma série de experiências, pesquisadores conseguiram revelar que o mecanismo molecular responsável pelo efeito protetor da hemoglobina falciforme é mediado pela enzima heme oxigenase-1 (HO-1), cuja produção é induzida pela hemoglobina falciforme, protegendo o corpo contra a malária cerebral ao impedir uma reação causada pelo parasita.

Por conta dessa diferença, em regiões com alta incidência de malária há uma maior frequência de pessoas afetadas com anemia falciforme heterozigóticas, já que elas possuem uma maior tendência a não serem afetadas por malária, como é o caso das populações que vivem em volta do Mar Mediterrâneo.

Povo Bajau e a respiração debaixo d’água

A habilidade da natação ajudou o ser humano ao longo da permanência na terra, entretanto, é incomum encontrarmos pessoas que, além de saberem nadar, consigam ficar por uma quantidade de tempo considerável debaixo d’água ou que consigam mergulhar em grandes profundidades. No entanto, o povo Bajau, da Malásia e das Filipinas, são conhecidos como “nômades do mar” justamente por conta de suas habilidades de mergulho livre, desenvolvidas a partir da dependência dessa população com a pesca de peixes e outras criaturas marinhas.

Desde jovens, eles aprendem a nadar e mergulhar, especialmente para obter produtos para consumo. Com a prática e as condições genéticas que já apresentam, os Bajaus passam de 6 a 10 horas na água durante o dia, na maioria das vezes submersos, chegando a ficar debaixo d’água por cerca de 2 minutos seguidos e em profundidades superiores a 50 metros.

Essa capacidade pode ser observada atualmente pois, ao longo de diversas gerações, indivíduos que nasciam com maior capacidade de permanecer sob a água por mais tempo possuíam maior chance, por exemplo, de obter alimento. Assim, devido a atuação da seleção natural, os Bajaus possuem, por exemplo, um baço maior, auxiliando no armazenamento de glóbulos vermelhos oxigenados, o que possibilita que consigam permanecer mais tempo sob a água. Também se observou que as crianças pequenas enxergam perfeitamente debaixo d’água, o que auxilia na prática de mergulho.

Para provarem que realmente se trata do fenômeno de seleção natural, foram realizados estudos de comparação de genoma, cujos resultados apontaram a seleção de variantes genéticas no gene PDE10A, que favorece o aumento do tamanho do baço nos Bajau. Também foram encontradas evidências de uma forte seleção específica em BDKRB2, um gene que afeta os reflexos de mergulho. Essas duas variações explicam porque esse povo da Ásia é mais adaptado a situações de mergulho do que os demais no planeta.

População Beríngia e sua dieta gordurosa

Encontrados entre a Sibéria e o Alasca, o povo da Beríngia foi o primeiro a se aventurar rumo às Américas, pelo Estreito de Bering, saídos da Ásia. Durante a permanência desse povo na ponte entre os dois continentes, hoje submersa, esses caçadores-coletores teriam sofrido pressões da seleção natural devido ao frio extremo e à adoção de uma dieta rica em proteínas e gorduras.

A dieta gordurosa se tornou muito presente em ameríndios, e a nova realidade alimentar acabou por selecionar variantes genéticas que proporcionavam vantagens dentro dessa nova realidade, como a mutação de um gene da família FADS (relacionado à metabolização de gorduras poli-insaturadas). Segundo um estudo realizado em 2015, essas mudanças permitem que esses indivíduos sejam capazes de digerir mais facilmente uma alimentação rica em ácidos graxos. Essas características só estão presentes em populações com ascendência beríngia. “Os Inuit são apenas uma das populações que carregam o sinal de seleção natural nesse gene”, explica a geneticista Tábita Hünemeier, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). 

Extremo norte e a tolerância ao frio

O frio divide opiniões – há quem aprecie muito as baixas temperaturas, e há quem não suporte. No Brasil, ainda é possível fugir do frio ou conviver com ele em apenas alguns meses do ano. Entretanto, essa não é a realidade de todas as regiões do mundo, como no caso dos Inuits no Ártico e dos Nenet na Rússia, que vivem no extremo norte no mundo e convivem com temperaturas rigorosamente baixas durante a maior parte do ano.

Embora algumas pessoas optem por regiões mais frias, se mudar para esses ambientes pode gerar mudanças no nosso corpo a longo prazo. Mas mesmo morando por muito tempo nessas regiões, o corpo de um estrangeiro nunca atinge o mesmo nível de adaptação de populações nativas que viveram no ambiente por gerações. Um exemplo desse fenômeno foi apresentado por pesquisadores que constataram que os indígenas siberianos são melhor adaptados ao frio quando comparados com os russos não indígenas que vivem na mesma comunidade.

Imagem de duas crianças no extremo frio.

Algumas tribos possuem uma variante em seu DNA que traz vantagens genéticas contra o frio extremo, como maiores taxas metabólicas basais (cerca de 50% maiores) com relação àqueles originários de regiões de clima temperado. Os indivíduos dessas tribos possuem vantagens para manter a temperatura do corpo de maneira mais eficaz, tais como possuir relativamente menos glândulas sudoríparas ao longo do corpo como um todo e mais glândulas desse tipo na face, além de apresentarem menos calafrios.

Diferenças na cor da pele ao redor do mundo

A seleção natural pode estar relacionada a diversas condições do ambiente, como mostrado nos exemplos acima. Não é por menos que pesquisas indicam que a incidência de luz solar também tem impacto em nossa genética, tendo resultado nos diferentes tons de pele encontrados pelo globo. Essa tese foi sugerida por pesquisadores da Academia de Ciências da Califórnia, em São Francisco, que teoriza sobre a possibilidade de peles escuras (mais mielinizadas) serem um fator protetor contra o câncer de pele, causado pela exposição ao sol.

Seguindo esse raciocínio, a distribuição da cor da pele entre populações humanas não seria por acaso: as populações com peles mais escuras tendem a ser encontradas próximas ao equador, e as mais claras, próximas aos polos, onde a incidência de luz natural é menos direta. 

Por possuir uma quantidade bem maior de melanina, a pele escura recebe apenas uma pequena quantidade de radiação UV, sendo que essa parte que penetra na pele possui um comprimento de onda menor (UVB). Apesar da UVB possuir efeitos nocivos, uma quantidade mínima é necessária, pois esses raios participam do processo de síntese da vitamina D, essencial para a produção e manutenção dos ossos. Pessoas de pele escura que vivem nos trópicos geralmente recebem radiação UV suficiente durante todo o ano para a UVB penetrar na pele e levá-los a produzir vitamina D. No entanto, fora dos trópicos o cenário é diferente, e as populações que se deslocaram para essas regiões estavam expostas a uma incidência solar significativamente menor, o que poderia resultar em baixos níveis de vitamina D em seus organismos. Assim, nessas condições específicas, indivíduos que, porventura, nasciam com a pele menos mielinizada, apresentavam vantagens sobre indivíduos de pele mais escura, por conseguirem manter mais altos os níveis de vitamina D. Dessa forma, ao longo das gerações, tons de pele mais claros foram selecionados e passaram a ser observados com maior frequência populacional em latitudes mais altas.

Referências